As lágrimas não derramadas
- Jessica Marzo
- 17 de mai.
- 2 min de leitura
Sentada na mesa da sorveteria ela observa os filhos brincarem de forca. Eunice Paiva acabou de receber a notícia da morte do marido pela Ditadura Militar. “Eles não têm mais pai” anuncia silenciosamente seu olhar. Ao redor ela captura o sorriso das pessoas nas mesas ao lado. Engole um choro úmido. Será que pensa na vida que nunca mais terá de volta? Os filhos continuam a brincadeira, a mais velha acompanha seu olhar. Talvez ela agora saiba da morte do pai.
Foi a cena mais bonita e triste para mim. É um filme de poucos diálogos e de poucas cenas catárticas, como um choro, um tiro, um grito, um corpo despedaçado. Nada disso. O drama do filme acontece nos olhares, principalmente da personagem de Fernanda Torres. Apesar de tudo, seu corpo ereto segue o fluxo normal do cotidiano. Afinal, tem uma casa para cuidar e cinco filhos para criar e proteger das más notícias.
Os olhos da mulher-mãe-viúva nos contam o drama. Ali, desde o comecinho, quando todos pousam para foto, Eunice observa os carros militares passando. Tem um outro momento em que está à deriva no mar e olha o helicóptero sobrevoando-a. O seu olhar anuncia o que estar por vir e denuncia o não dito.
Eu passo o filme esperando um choro-oceano de Eunice, daqueles de lavar a alma. Tem muitas cenas da família com os corpos molhados, um entra e sai naquela casa solar, sentam-se no sofá, escutam conversas políticas e recebem notícia triste com o cabelo pingando. Muita água salgada, mas poucas lágrimas. Senti vontade de secar todo mundo, mas pensando bem, talvez não tenha toalha que dê conta de secar um corpo úmido por dentro.
Ainda Estou Aqui carrega uma força brutal, construída a partir do singelo e da delicadeza. Nas cenas que retratam a vida ordinária, reconheço fragmentos da minha própria experiência. E então na sala de cinema derramo as lágrimas de Eunice, de seus filhos e das famílias que tiveram suas vidas devastadas pela ditadura militar.

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