o ABECÊ do que não pode ter num livro infantil
- Jessica Marzo
- 17 de set. de 2021
- 2 min de leitura
Atualizado: 2 de out. de 2021
Reimpresso em 2020, o livro ABECÊ da Liberdade, está sendo recolhido de todos os pontos de vendas pela Editora Cia das Letrinhas. A proposta do livro é contar para as crianças a história de Luiz Gama, figura histórica da luta abolicionista no Brasil. O livro traz cenas de crianças negras brincando num navio negreiro de ciranda, escravos de Jó e pulando corda com as correntes que prendiam os escravos. Além das brincadeiras, o livro traz cenas em que jovens negros chegam a achar divertido ter de dançar para mostrar seus atributos físicos enquanto estão sendo vendidos como escravos. Em uma outra cena o navio negreiro é acompanhado por golfinhos, sugerindo um clima de passeio e pessoas felizes a bordo.
José Roberto Torero, escritor da obra, argumenta sobre este tratamento alegre e harmonioso do livro: "a ironia é uma forma de trabalhar a dor".
Marcus, também escritor do livro, confirmou que a obra não foi acompanhada por nenhum especialista ou autor negro E Isabel, da Cia das Letrinhas, afirmou: “Infelizmente, esse título não passou por revisão ao ser reimpresso”
Dois escritores, um ilustrador e uma editora se propuseram escrever sobre a escravidão sem se debruçar em fatos históricos e nas questões urgentes que atravessam a luta antirracista. Antes de ser impressa essa obra passou pelos olhos de pelo menos meia dúzia de pessoas, todas elas do universo literário, e ninguém percebeu o absurdo.
A Companhia das Letrinhas deve receber centenas de originais todos os meses, e escolhe publicar uma obra racista. Como não existe um núcleo, um departamento dentro de uma editora deste tamanho e com essa importância, que olhe com atenção para obras que tratem de temas tão complexos e relevantes? A literatura é um dos meios que temos de combate às desigualdades. Não pode, de jeito nenhum, passar, esbarrar, encostar no racismo, ainda mais com o público infantil.
Torero, que já publicou mais de 40 livros, ganhador do prêmio Jabuti, parece não concordar com a denúncia de racismo de seus leitores e com a decisão da editora de retirada do livro. Ele escreveu um texto nesta semana sobre “A difícil arte de escrever para crianças em tempos de vigilância constante de patrulhas ideológicas”, segundo suas próprias palavras. Longe de se desculpar ou reconhecer qualquer tipo de equívoco ou de despreparo com o tema, o escritor passa linhas e linhas discorrendo sobre a censura que suas ideias “bacanérrimas e desconstruídonas” sofreram ao longo dos anos. Ele culpa as famílias pela “dolorosa autocensura” que é obrigado a fazer em seu processo criativo e fecha seu discurso dizendo: “Enfim, é claro que um escritor não quer ofender seus leitores. Quer cativá-lo, seduzi-lo, fazer com que ele fique preso ao livro até a última página. Mas também não quer abrir mão da alegria de escrever, de imaginar, de inventar mundos, de dizer o que pensa. E isso não está fácil.”
Agora, se não está fácil para ele, que é publicado de olhos fechados pela maior editora do Brasil, imagina para todo o resto, que não sente nem o cheiro de seus privilégios.
Matéria da uol com mais detalhes:https://noticias.uol.com.br/.../cia-das-letras-recolhe...
Texto completo de José Roberto Torero: https://rascunho.com.br/liberado/pisando-em-ovos/
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