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Um cigarro a minha mãe

  • Jessica Marzo
  • 4 de mar. de 2022
  • 1 min de leitura

Atualizado: 9 de jun. de 2022

Na sala de minha infância, assisto com deslumbre o movimento da fumaça dançar, circular o ar, até que num assopro... a dança se desfaz. E recomeça. A brasa queimando o tempo.


- não largo porque não quero – ela repete há 50 anos


O rádio ligado. Sentada no sofá, todos os dias, depois da louça lavada e do café preto, ela ocupa o canto esquerdo do sofá, como uma rainha. Dona da casa. Faz fumaça. O fogo vermelho, invade apressado o papel, filtro e reduz em cinza o caminho percorrido, até ficar por um fio. E virar pó.


As janelas abertas dia e a noite (escancaradas - reclama meu pai) mesmo no inverno, para a fumaça sair quando quiser. E só a fumaça, sair quando quiser. Minha mãe não é escritora, atriz nem publicitária. Dona da casa, do sofá e de seu cigarro. Tem a voz grossa, de tanto tragar vontades. Deve ser por isso que fala palavrão. Vai toma no c*, puta que pariu, vai à merda. Fuma desde os quinze, nos festivais de MPB e na faculdade de letras que não fez.


Não largo porque não quero – ela repete há 50 anos


Há 10 anos fui embora. E hoje, assim como minha mãe, sou dona da casa. Abro as janelas, sento-me do lado esquerdo do sofá e acompanho a fumaça dançar, circular o ar, mesmo sem nunca ter acendido um cigarro.



Ilustração: Sharyn Bursic

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