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O tempo rodou num instante

  • Jessica Marzo
  • 7 de fev.
  • 3 min de leitura

“Amores, Biela acabou de falecer.” A mensagem apareceu no grupo de zap da "Turma do Funil".


Biela se foi, e com ele levou meus vinte e poucos anos. Passei boa parte da minha juventude no Roda Viva, um bar apertado em São Paulo, com paredes tomadas por fotos de Chico, Caetano e Gil. Lá, cerveja de garrafa, batata frita e a névoa de cigarro — dos tempos em que ainda se fumava em ambientes fechados — faziam parte do cenário.


O bar lotado, cheio de gente que saía direto do trabalho ou da faculdade e encontrava alívio para dias arrastados, embalados e abraçados pelas vozes de Rogério e Biela.


O Roda Viva resistiu por anos: ao amadurecimento de seu público fiel, à especulação imobiliária e à polarização política cada vez pior. Mas em 2018, após 15 anos, veio o anúncio da despedida. Por falta de público e dívidas, o Roda Viva fecharia suas portas.

Naquela época, eu já estava formada, casada, com uma filha pequena e grávida da segunda. Aos poucos e sem perceber, fui me afastando do Roda. As noites de quinta-feira, regadas a cachaça e “Apesar de Você”, foram substituídas por canções de ninar.


Rogério e Biela tocaram no meu casamento, na minha festa de 35 anos, e vez ou outra eu aparecia no bar, movida pela vontade de revisitar algo da minha juventude.

Na noite de despedida, deixei minha filha com a avó, me aprontei e fui. Lá estava o Roda Viva, com seus quadros ainda no mesmo lugar. Mas, abaixo de cada foto, havia um papelzinho escrito à mão com um valor de venda. Era o fim.


Com o pandeiro na mão, Biela pegou o microfone. A voz embargada entregava a emoção contida: “A gente tentou... É um encerramento digno da nossa história.”

O bar estava lotado, e ali dançamos tanta dança, foi tanta felicidade, que toda a cidade se iluminou. Foi lindo! Quando tudo indicava que era de fato o fim, Biela surpreendeu:

“Hoje não será uma noite de lamentação, mas a celebração do recomeço do Roda Viva.”

Naquela noite, o bar recebeu um investimento e sobreviveu por mais alguns meses. Mas não por muito tempo. O Roda Viva fechou as portas de vez.


“Tem samba de sobra, ninguém quer sambar

Não há mais quem cante, nem há mais lugar

O sol chegou antes do samba chegar

Quem passa nem liga, já vai trabalhar

E você, minha amiga, já pode chorar”


Ainda assim, Biela e Rogério seguiram na noite paulistana, levando o violão debaixo do braço, parando em qualquer esquina, entrando em qualquer botequim.

Agora, a impossibilidade de ver Biela batucar no cajón e cantar Quereres me atravessa com a certeza de que sim, é o fim de uma era. Pelo menos para mim. E não é de hoje. Foi acontecendo gradualmente, sem que eu me desse conta.


O fechamento do bar, a morte de Elza, Rita, Gal... Até os shows de despedida de Caetano e Bethânia carregam esse peso, não carregam?


Há muita música boa e novos artistas talentosos por aí. Mas falo de um tempo, de um estado de distração e paixão, em que toda semana, embriagados sobre a névoa branca de cigarro, nós cantávamos em coro:


“Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega o destino pra lá”



Ilustração: Fernanda Segolin


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