O nascimento da voz
- Jessica Marzo
- 21 de dez. de 2020
- 2 min de leitura
Ela agora tem voz. De repente os nomes de pessoas, objetos e sensações, presos no seu corpinho pequeno e redondo de pouco equilíbrio, cavoucaram espaço pela laringe, cordas vocais e num ato vibrante atravessaram boca, dente, língua....”mamá dodói abi qué vovó”. Pronto, um caminho sem volta. Suas frases ainda curtas preenchem a cena, a história, o cotidiano e passam a ser de todes. O mundo agora ganha uma nova voz.
Ainda em um estado bagunçado, excitado e divertido ela brinca com as palavras, acorda recitando seu valioso vocabulário sem compromisso com os sentidos. E no devagar depressa da vida, ela adentra aos códigos sociais, inaugura seu caminhar civilizatório.
Ao vê-la assim livre e eufórica em seu falar, tento buscar lembranças da minha infância de quando foi que os filtros morais começaram a me calar. Não grite, não xingue, agradeça, peça desculpas, cale a boca. A voz que nasceu livre, leve e solta, aos poucos é domesticada. Parece que ela aprende a atravessar a boca só no sinal verde. Ou que tem uma cancela na saída da voz que só abre quando a voz está bem vestidinha e comportada, quando não vai causar nenhum estrago lá fora. No atropelamento dos dias nos acostumamos com o gosto ruim da boca emudecida. De silêncio gritante seguimos.
E neste viver colonizado falar é um ato de coragem. Que essa voz, que acaba de se anunciar, atravesse com ousadia e amor próprio as camadas desumanas que encontrar pela frente. Que sua voz não se perca ou se confunda com outras vozes. Que sua voz não desaprenda a falar o que é de verdade. Quando se sabe quem é, o corpo se transforma numa grande potência e nunca mais vive calado.

ilustração: Victo Ngai
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