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Casa vazia de avó

  • Jessica Marzo
  • 20 de mar. de 2023
  • 3 min de leitura

Atualizado: 22 de mar. de 2023

Quase não vou a casa dela. Devia ir mais. Uma hora pra chegar. Devia ir mais. O verão ta indo embora. Ainda não fui, nenhuma vez esse ano. Eu ligo. Menos do que deveria. As crianças, não me deixam falar direito no telefone. Não, não é por isso. Dos 5 netos, eu sou a que mais ligo. Devia ir mais à casa dela. 95 anos. Sozinha. Ela, a gata, as duas calopsitas e o Raul Gil na televisão.

– Ana, leva as meninas pra cantar no Raul Gil, cada criança esperta, quem nem as suas.


Entro na sala. A gata, sentada no sofá azul marinho nem se mexe. Na parede fotos em preto e branco da minha mãe e dos meus tios pequenos. Uma foto desbotada impressa em tela grossa de quando eu era bebê. Um relógio de pêndulo que toca de hora em hora.

– Esse relógio tem mais de cem anos, nunca parou de funcionar.


Um quadro com uma casa pintada a óleo. Parece um sítio afastado. Olho profundo, como se pudesse entrar no portão pincelado e ver minha avó fazendo panquecas, meu avô fumando, minha mãe brincando de boneca e meus tios correndo

– Tá vendo Ana, era rua de terra quando mudamos pra cá.


Sento-me ao seu lado, com o celular mostro as fotos da minha viagem de carnaval.

– Olha, que vida boa, hoje em dia é tudo mais fácil, né? Graças a Deus. Sabe, aos oito anos eu ia na Avenida Paulista vender parasitas. Ela repete essa história sempre. Sempre. E continua: - Meu padrasto me batia se não vendesse tudo.


Ainda com o celular na mão, viro a tela no modo self e clico uma foto nossa.

– Ai credo, olha a minha cara, cheia de ruga. A velhice é bruta.

Cada vez menos, ela quer sair de casa, não escuta muito bem, é vaidosa, se recusa a usar aparelho auditivo.


Do lado da televisão encosto no retrato do vovô. Não me lembro dele, morreu quando eu tinha dois anos. De tanto beber, pelo que contam.

– Você viu como seu avô era bonito?

Vejo um homem magro, bem magro, num paletó escuro, cabelos castanhos e bigode. Perguntei se ele batia nela

- Ah Ana, naquele tempo era tudo diferente, né? Hoje a vida melhorou.


Vou até a vitrola. Abaixo para ver os discos. Chico, Caetano, Gal...

– Esses eram da sua mãe, quer levar?

Digo que não sorrindo e continuo procurando discos. Xuxa, saltimbancos...

– Esses eram seus Ana, lembra? Você gostava tanto de dançar. Pergunto qual ela gosta de ouvir.

– Toca o Roberto Carlos


Ouvimos. O cheiro do bolo de fubá invade a sala. Ela come rápido, herança da época em que trabalhou na fábrica, tinha cinco minutos de almoço. Desaprendeu a mastigar devagar. Tem tanto tempo no dia. E pouco tempo na vida.


Na gaiola duas calopsitas amarelas. Cantam. Ela responde. Eu chego perto das aves, observo. Elas cantam, berram, talvez conversem, eu que não entendo. Todos os dias, sozinha naquela casa, minha avó bate papo com os bichos.


Me despeço. Vou em direção ao quintal. Olho para pitangueira carregada de fruta. Ela pede pra eu esperar e volta com um tapeware.

- Tá docinha as pitangas, leva pra você e pras meninas. Elas gostam né?


Segura no corrimão, desce as escadas de ladinho, com cuidado.

– Pode ir na frente, tô com uma dor no ciático, meu joelho também dói. Quando a gente fica velha, tudo o que não presta aparece.


Entro no carro. Antes de fechar a porta, ouço baixinho o rei cantando “ Como é grande o meu amor por você” Ela acena, pequenina, cada vez menor, de presilha no cabelo pra segurar a franja escorrida. Aceno de volta, me despeço dela, da casa, dos bichos, das plantas. Olho o muro branco da casa, manchado de preto, descascado, gasto, velho, esperando há 20 anos para ser consertado.



ilustração: Bauman Ekaterina


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